A Academia Teixeirense de Letras mediante o Premio Castro Alves de Literatura 2019 confere o 1° lugar da categoria crônica para Mayara Mutti com a crônica: “Sobre cores, palavras e amor”. A forma como ela escreve é leve, envolvente e muito bela. A pontuação, as palavras que escolheu, a maneira que arranjou as frases são muito autenticas. O texto tem um tempero regional charmosissimo e junto a ele a ousadia de transpor as fronteiras da cultura apresentando uma mensagem contemporânea e forte, com muita sensibilidade.
Dispomos aqui o texto na integra:
Sobre cores, palavras e amor.
No começo era sertão. Ela sabia, estava no sertão. Era seco, cinza. Onde já se viu sertão ser cinza? Aquela menina enxergava o mundo como quem vê cores e palavras. Tinha alma diversa do que se via ali na cidade cinza – sertão de cinzas. Não era areia nem água, nem mar. Dessas coisas que só se vê onde não há vida. A criança com alma de borboleta. Olhava para um lado e para o outro tentando entender como é que se vive, gostando de cores no meio de cinzas – vivia no meio do nada. Não gostava. Luiza tinha sete, oito, às vezes nem sabia a idade que tinha. A mente não cabia ali. Queria voar. Estava sempre criando: o futuro, brincadeira, um maneira de colorir tudo que via. O tempo passou. Já não era menina, mas parecia. Não entendeu muito bem essa coisa de ser alguém na vida. Não sabia ao certo quem era. Tornou-se muitos, muitas vidas vivendo. A sua nada – cinza. Vivia no mundo da lua. De Luz – Luiza, seu nome. Achava tudo meio deserto. Desses que só se vê no interior do interior, quando muito árido. Só tinha mesmo era idade, por dentro era miúda, feito formiga que se perdeu do formigueiro. Miúda e só – incapaz de ver as cores todas. De tanto que ouviu palavras na vida, acreditou. Não sabia ser alguém na vida.
Na segunda-feira, contrariando tudo que se diz. Acordou. Olhou no espelho, no fundo dos olhos que eram verdes, mas não tinham cor nem vida, se perguntou: “Que é mesmo que sou? Como é que se vira gente na vida?”. Resolveu que não podia viver assim. Como quem não passou pela vida. Lembrou-se de quando era criança e queria ser borboleta. Decidiu conhecer o mundo para poder voar. Antes disso, conhecia o mundo pelas palavras, gostava delas. Passou um tempo sentindo aversão por palavra. Mas ódio mesmo, de se evitar, é muito amor que perdeu a cor. Com a mochila nas costas, papel e caneta nas mãos e um grande deslumbramento do mundo no peito, foi conhecer o sertão. Até então ele era letra e esperança, não tinha virado chão. Quando saiu de casa, a primeira coisa que viu foi uma planta. Dessas que de tanta aridez se torna áspera, dramática! Sentou um pouco distante da planta. Teve medo do aproximar. Contemplativa que era, ficou ali admirando os modos da planta. Achando bonita a forma que era. Sertaneja, resistente – Resistência! Nomeou. Era muita beleza que via, de inebriar mesmo. Tinha cor! A primeira vez que vira cor. Tinha isso dentro de Luiza: via beleza no modo verdadeiro como as coisas eram – plantas, pessoas, palavras.
De tanto ver, sentir, pensar sobre Resistência, pegou amor. Amor desses que faz chover. Era chuva muita. Toró retado, um pé d’água. Luiza ficou quieta, não queria se afastar muito da planta. Era a única cor no meio do nada. A chuva não passava. Ela não conseguia enxergar Resistência. Ficou tudo escuro, nublado. As lágrimas choviam de seus olhos. Era saudade. Pensava: “Dureza isso da vida tirar da gente o único colorido que se vê.” Confusa e triste, se agasalhou com um cobertor. Já não podia ver o amor, a cor. Resistência sumiu no meio da tempestade. Tempestade que a beleza de seu existir causou. Queria entender o que era aquilo. Frio e calor, cor e neblina ao mesmo tempo. Paz e temporal. Aos poucos a chuva se foi. Sol e areia, ar. O tempo em suspensão. Ficou a filosofar. Não sabia bem o que era ser alguém na vida. Sozinha. Palavra é assim: depois que gruda na pele é difícil tirar. Ficou juntando palavras, na ausência da planta. Gostava de palavras, lembrou. Se pôs a juntá-las: sertão, ser alguém, Resistência, cores, saudade. De tanto repetir, ligou uma coisa à outra. Pegou caneta e papel. Iria escrever sobre aquela planta – ser tão bonito. Coisa da alma, do fundo dos olhos. Decidiu colorir o mundo com palavras. Resistência sumiu no meio da chuva que seu amor causou. Restaram as palavras, que juntas ajudaram Luiza a enxergar melhor. Entendeu tudo: Só é possível ser alguém no meio do nada, quando se encontra Resistência. E mesmo sentindo saudade, leva a planta dentro do peito. Guarda o movimento dos cílios, o brilho. Escreve para palavra se concretizar em cor. Amor é Resistência.
Ótimo. Resistir com cor. Resistir sempre.
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